Olhando para o nosso quintal e vendo o nosso jogo

Reflexões sobre nosso DNA

Carlos Pimentel

10/11/20234 min ler


Falamos no ultimo artigo sobre como o cérebro e a intrincada rede neural funciona, quando estimulada, para que a tomada de decisão esteja presente. Vimos ao longo de outros artigos também que a quantidade de situações, variabilidade, nível de dificuldade, contexto, emoções, tudo isso, tem influencia positiva ou negativa na resposta a ser dada. E, não diferentemente, compartilhamos o quanto é importante estarmos atentos à manipulação dos aspectos presentes no treino, que aqui, agora, chamaremos de constrangimentos.

Esses constrangimentos são, sem dúvida, os elementos que cabe a cada um de nós, treinadores, facilitadores e pais, oferecermos e ajustarmos para que o conteúdo do treino seja, especifico, desafiador, complexo, atingível e prazeiroso. Que desafie sim, mas que igualmente permita a solução de um problema, a obtenção de repertório, a satisfação da conquista e o desejo pela continuidade.

Podemos ajustar esses constrangimentos das mais variadas formas possíveis, através de regras, número de jogadores, delimitação do espaço, princípios de jogo, utilização de materiais, nível de dificuldade, quantidade de tempo, de pausa, de repetições…

O que não devemos é, ao selecionar um estímulo e, obtendo um resposta positiva, nos contentarmos com o resultado, avançar para uma próxima situação e nunca mais retornar a mesma estimulação, na ilusão que simplesmente aquele conteúdo ja foi aprendido e apreendido pelo nosso jogador. Os reforços de aprendizagem são de fundamental importância para solidificar e dar confiança à seleção e execução dos nossos comportamentos em campo.

Também não devemos, quando obtivermos uma resposta inadequada, simplesmente desprezarmos aquela situação, como se nada houvesse ocorrido, ou pior, nada tivesse sido retido. A desconstrução de uma atividade, em situações de adversidade ou resultados pouco eficazes, é o primeiro passo para uma correta construção da resposta cognitiva e motora para o desenvolvimento da tomada de decisão. Por vezes, um passinho atrás, um ajuste de dificuldade ou um problema mais compreendido pelos atletas, por si só, permitem, quando deparados à nova situação problema, uma resposta assertiva e eficaz. E, com isso, um Feedback positivo que será o alicerce adquirido para a evolução continua da nossa aprendizagem desportiva.

Muito se fala do futebol de rua, e da imensa contribuição na formação dos jogadores. Muito se fala também que, com as mudanças urbanas dos nossos tempos, as opções do jogo na várzea, nos campos de terra, ou até nas calçadas, foram se tornando diminutas. Com isso, inclusive, o boom de escolinhas de futebol, de alguma maneira, supriu essa carência de espaço e oportunidade para a prática do futebol, principalmente em idades menores.

Fato é, que se por um lado esse fenômeno social ajudou o contínuo oferecimento da prática do futebol, por outro lado, muitas vezes, também, burocratizou demais o esporte, com uma sistematização de métodos, de conceitos fechados, analíticos, repetitivos e pouco inspiradores.

Por serem comerciais, são menos aleatórios, menos imprevisíveis, menos democráticos e menos autônomos. Não se trata de refutarmos a relevância desses espaços, muito pelo contrario, mas sim, de continuarmos desejosos pelo que de mais orgânico, rico e inclusivo que existe, no futebol jogado livremente, na rua, no campo, na praia, na calçada, no quintal de casa, com toda variabilidade, aleatoriedade, caos e repertório de oportunidades que por si só confere.

Nesse sentido, nós, os “professores” também precisamos nos conscientizar do nosso papel. Não se trata de reproduzirmos o que vemos na TV, nas propagandas ou nas mídias sociais. Não devemos querer sermos mais que os protagonistas de verdade.

O futebol enquanto fenômeno social e esportivo carrega um vasto repertório de características culturais do meio e contexto a que estão inseridos seus praticantes. Isso vale para qualquer cultura e época. Há muito que identificar das características de um povo através do jeito com que “jogam bola”.

Roberto DaMatta, um renomado antropólogo, dispensou grande parte da sua produção intelectual no desvendar da maneira do jogar futebol do atleta brasileiro. Hoje muito se fala na DNA brasileiro, tendência de jogo brasileiro, escola brasileira de futebol. Em outras palavras, o que estamos na verdade focando são os laços culturais dotados de significados e representações da nossa cultura que se expressam livremente durante a prática no futebol.

Qual seria esse estilo? Alguns países classificam como arte, como ginga, como irreverência, como criatividade, como irresponsabilidade e por ai vai…

DaMatta afirma que a capacidade de viver nas zonas fronteiriças entre o permitido e o proibido, assim como, a capacidade de solucionar problemas como, na própria sociedade, pela luta por sobrevivência, confere um jeito muito peculiar do brasileiro jogar o o jogo de futebol.

Ao longo dessas três décadas militando no futebol profissional, pude presenciar movimentos de afastamento e aproximação de tendências com essas características culturais do nosso jogar. O que posso dizer é que, da mesma maneira que a sociedade muda, evolui ou involui, as escolhas e estéticas dentro de campo também mudarão seus contornos.

Fica portanto uma dica. Nada é mais específico e autêntico do que aquilo que fazemos impulsionados por nossa essência. Isso vale, inclusive, para o nosso futebol. Quanto perdermos um pouco nossas referências, aconselho veementemente olharmos para o nosso redor, inclusive para o nosso próprio quintal, e identificarmos se estamos vendo o que de mais real e autêntico existe em nosso jogo.

Afinal, Esse é o nosso jogo!

Abraços